Q&A

Q&A 13/02/2015

By Eduardo Albuquerque - 2/13/2015

Todas as sextas-feiras eu respondo perguntas enviadas pelos leitores do blog. Se quiser me mandar uma, acesse este link e aperte enviar (ou tente nos comentários!).

Vamos ao desta semana!


Na hora de escrever um roteiro adaptado de outra obra, que estratégias são usadas para adequar as narrativas? Até que ponto é "saudável" ser fiel ao texto original?

Bruno Janot

Grande Janot!
Prazer imensurável!

Na hora de adaptar acho que só uma coisa tem de ser fiel-fiel ao original: o tom, a alma. De resto eu acho que tem que se submeter às regras do meio para o qual você está adaptando a obra.

Sabe, expectativa não é o problema do público que, familiarizado com o original, vai consumir um derivado. É a incompreensão de que o meio/a mídia condiciona totalmente a obra.

Peguemos um livro e um filme. Um é a capacidade de estimular sentimentos através de palavras. O outro é a capacidade de estimular sensações através de imagens. Botei itálico para chamar atenção à diferença sensorial de cada ferramenta, mas também, tão importante quanto, é a diferença de efeito de cada uma, a diferença entre sentimento e sensação, onde este é provocado de fora pra dentro - segundo o dicionário, sensação é a "impressão produzida pelos objectos exteriores num órgão dos sentidos, transmitida ao cérebro pelos nervos, onde se converte em ideia, julgamento ou percepção." - enquanto aquele (os sentimentos) são informações que seres biológicos são capazes de sentir nas situações que vivenciam.

Percebe? O livro, por mais que seja feito por outrém, só ganha vida no leitor. Quando abrimos um livro, fazemos em nossas cabeças um "filminho" do que lemos. Enquanto uma obra audiovisual, ainda que possa ser percebida diferentemente de espectador pra espectador, nunca será vista diferente. O que quero dizer; o Jack demora a mesma quantidade de segundos pra soltar a mão da Rose e afundar morto no mar gelado - 8 segundos. Eu contei. - em Titanic. Independente de quem esteja assistindo. Já a narrativa disto num livro pode tocar num ritmo totalmente diferente na cabeça de cada um.

Então, o foda é que quando não sai da forma como imaginávamos no filminho em nossa cabeça, refutamos como caído, infiel. Às vezes ainda usamos argumentos elaborados, como "eles cortaram um personagem brilhante" ou "aquela sequência de quadribol era vital" ou até "mudaram X, que no original era Y e isso transforma completamente o outcome da coisa!"... mas são argumentos vazios. Cada meio tem suas regras e suas construções. A adaptação só erra e torna-se caída ou infiel quando não alcança/trai o espírito original. O tom do mundo e os personagens; o tema e a moral da história. Pense os "Batman"s de Tim Burton. Excelentes peças audiovisuais, mas muito distante do que é, de fato, a alma do Batman (muito melhor capturado nas adaptações de Christopher Nolan), logo adaptações fracas.

Já a imprecisão de fatos, desfecho/desenvolvimento diferentes... tudo isso é secundário se o espírito e o coração estão no lugar certo. Pense toda a série do Harry Potter e até os próprios Batmans de Nolan; tem várias coisas que não batem com o original, e - talvez até por isso - são puta adaptações!

Então, como espectador, sempre que nos depararmos com algo adaptado, o qual o original já vimos, temos que encarar como um outro animal e apreciá-lo pelo que ele é. Como roteirista idem, pensar no nosso animal de sempre (estrutura) mas com roupas inspiradas no original. Pense bem: não é justo; é tipo você estar namorando uma menina e ela ficar toda hora falando como o ex-namorado dela fazia isso ou aquilo diferente da forma com a qual você lida com as coisas. Ou fica no original ou se abra pro "novo"/adaptado.

Valeu pela excelente pergunta, meu caro!

  • Share:

You Might Also Like

4 comentários

  1. Me lembrei da adaptação de "About a Boy" do Hornby. O filme é baseado em metade do livro e todo o terceiro ato é 'novo', mas, como você disse, a essência e a alma dos personagens estão lá, não comprometendo o filme em nada.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Tony!
      Que maravilha ler você aqui! Ainda mais que você é do mundo das letras e vive este processo de adaptação de línguas no dia-a-dia.

      O "About a Boy" com o Hugh Grant, né? Você já viu a série de TV? Nunca vi, mas com certeza também tem outros vários furos, invencionices... resta saber se a alma está lá!

      Volte sempre, comente sempre! A casa é sua!

      Excluir
    2. A série de TV conta toda história do filme em um episódio, que se não me engano, é de 30 minutos. Depois simplesmente usam os personagens já estabelecidos (conhecidos) em novas situações.

      Outra adaptação que foge bastante do original é o Drácula de Bram Stoker. Que até onde sei foi muito bem recebido, mas pessoalmente não gostei.

      Excluir
  2. Grande análise, amigo! Para crescer ainda mais a ciranda de referências cito: "De Olhos Bem Fechados", do Kubrick, e "Abril Despedaçado", do Walter Salles. Duas adaptações que considero muito boas, pois além de preservarem a alma, como você muito bem explicou, também conseguiram avançar sobre os originais mantendo coerência e coesão.

    ResponderExcluir