Q&A

Q&A 28/08/2015

By Eduardo Albuquerque - 8/28/2015

Todas as sextas-feiras eu respondo perguntas enviadas pelos leitores do blog. Se quiser me mandar uma, acesse este link e aperte enviar (ou tente nos comentários!).

Vamos ao desta semana!

Tenho lido o máximo de roteiros que encontra e percebo dois estilos de escrita. Tem um grupo de roteiros que o estilo é mais literário, exemplo para você entender, o roteirista narra ações e personagens de forma mais livre, como um romance.

Ex:
Curly arrasta-se até as persianas e cai de joelhos no chão. Está soluçando compulsivamente agora. Sua dor é tal que ele chega ao ponto de morder as persianas.

Gettis permanece imóvel na sua cadeira.

GETTIS
Tudo bem, agora já chega. Você não vai querer
morder as persianas, vai Curly? Mandei
instalar nessa terça.

Curly começa a falar lentamente, se levantando do chão, ainda chorando. Gittes apanha um copo de uísque e rapidamente escolhe uma garrafa de Bourbon barato dentro outros tipos de uísque mais sofisticados.
TRECHO do roteiro Chinatown, de Robert Towne traduzido do livro Os Fundamentos do Roteirismo de Syd Field.

Tambem há trechos em roteiros brasileiros como "Feliz Natal" de Selton Mello.

Ex:
Bruno está plantado na frente da casa da avó com o papel na mão

Por outro lado já li roteiros mais técnicos, que evitam certas descrições que só aparecem no papel, como os exemplos acima (SUA DOR É TAL, PERMANECE IMOVEL, ESCOLHE O UISQUE MAIS BARATO, ESTÁ PLANTADO)

Alguns roteiristas dizem que esse tipo de palavra deve se evitar, que movimentos que o personagem não faz em cena não devem ser descritos (como exemplo do PERMANECE IMOVEL, ESTÁ PLANTADO).

O que você acha disso?

Particularmente sempre escrevi – e como venho de uma vertente literária – de forma romanceada, já fico intrigado se estou desenvolvendo corretamente ou enchendo meu texto de informações desnecessárias.

Jeferson Rodrigues

Jef, você sempre me salva nos Q&A's! s2 s2

Acho que esta questão é bem simples: "literário" é bom e deve ser buscado. É o que dá o sabor à leitura aliado às vozes dos personagens e suas combinações (diálogos). É a sua capacidade de escolher as palavras mais visuais que vão manipular a "imaginação" do leitor.

O que não se pode fazer - em roteiros - é escrever coisas que não são possíveis de serem VISTAS na tela.

Perceba: nenhum dos seus dois exemplos está descrevendo algo impossível de ser visto. Apenas um é mais cirúrgico e o outro verborrágico. "Sua dor é tal" é usado como instrumento de comparação para descrever o que o personagem faz (morder as cortinas); tudo certo, pura construção de frase. "Permanece imóvel" pode ser descrito de mil maneiras, mas cumpre a função de dizer que o personagem não se mexe e até "escolhe o uisque mais barato, dentre outros tipos de uísques mais sofisticados" está dando uma direção de cena para a direção de arte (e pro leitor, claro) de que há de ter um uísque com rótulo menos requintado no meio de várias garrafas mais chiques.

Vou te dar um exemplo real de o que está errado:

Contrariando a física, 5 corpos ocupam o mesmo lugar num combalido FIAT UNO 1993 que vem descendo uma estrada tão quente que faz aquela ondinha de miragem. Dentro do carro MICKEY, MINNIE, HUGUINHO, ZEZINHO e LUIZINHO, voltam de uma conferência médica na Bahia, dividindo não só o suor - provocado pela óbvia falta de ar-condicionado - como um silêncio sepucral. Torta de climão evidente no ar.

Eu te pergunto; onde está(estão) o(s) erro(s) nesta descrição?
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E aí, já sabe a resposta?
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O erro está numa única oração: "voltam de uma conferência médica na Bahia"!

Sim, pois como você pode saber disto só olhando para os personagens? Só se eles tivessem uma plaquinha dizendo "estamos voltando de uma conferência médica realizada na Bahia" ou uma porrada de mini pistas para o espectador a la Sherlock Holmes juntar e deduzir (sendo que se fosse essa a intenção; também não seria assim o jeito certo de se fazer).

Todo o resto da descrição desta cena foi um jeito mais criativo(?) ou menos quadrado de apontar coisas que serão vistas e/ou sentidas através das imagens. Breaking down:

"Contrariando a física, 5 corpos ocupam o mesmo lugar num combalido FIAT UNO 1993 que vem descendo uma estrada tão quente que faz aquela ondinha de miragem".
A informação básica é que um pequeno carro velho de guerra, lotado com 5 pessoas, está num local muito quente. Fui lúdico aqui, específico ali, mas nada que não seja impossível de se ver em imagem.

"(...) dividindo não só o suor - provocado pela óbvia falta de ar-condicionado - como um silêncio sepucral. Torta de climão evidente no ar."
Idem. Reiterei o calor e a precariedade do carro e com a metáfora dei o "sentimento" da cena. O único problema é mesmo o lance da Bahia, que é algo que não tem como ser visto.


Vale usar qualquer artifício que você quiser para colocar seu leitor dentro da sua história. E nesse caso, faço um adendo ao que falei: só vale escrever coisas que podem ser vistas E SENTIDAS na tela. Por exemplo; eu uso onomatopéias quando acho importante que a galera entenda qual é a sonoridade que estou buscando (mesmo que não seja exatamente isso) e às vezes até uma frase com apenas um palavrão, simplesmente pra demarcar o clima do momento, tipo "putaquepariu."

Use metáforas, seja criativo; isso tudo é importante e é o que se espera de você. Mas fique atento para não fugir da essência do formato roteirístico.

Ah, uma última coisa que lembrei: também não exagere, pois, lembre-se, roteiros são peças técnicas e se você pirar nas descrições, vai ocupar muitas linhas e atrapalhar o trabalho de minutagem do filme feito pelo Assistente de Direção durante a pré-produção.

Abraço!

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1 comentários

  1. Perfeito Eduardo, sempre completo e claro nos exemplos...
    Aproveito para lembrar da estreia da novela A Regra do Jogo de JOAO EMANUEL CARNEIRO. Eu sei que o pessoal torce o nariz pra novela e a maioria (inclusive eu) fica atento as produções norte americanas, mas esse autor (que escrevi em caixa alta para dizer o quanto é bom) é um dos melhores autores do país. Na minha opinião o cara tem uma condução da trama em forma seriada que iguala os melhores do gênero (cito David Simon (The Wire), David Chase (Familia Soprado), Vince Gilligam (Breaking Bad), Matthew Weiner (Mad Man), o único detalhe é que escreve novela e no Brasil, então por vezes é ridicularizado, mas atesto, o trabalho principalmente para nós roteiristas que buscamos criar tramas de boa condução, acho ele ótimo. Assistam se puderem.

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