Escrevendo cenas que não existem

By Eduardo Albuquerque - 2/23/2016




Tem uma coisa que eu faço às vezes que, à primeira vista, pode parecer um exagero/loucura/perda de tempo, mas que é muito útil no processo de escrever para chegar a um resultado final legal: eu escrevo cenas que não estão no filme.

É lugar comum que um filme deve ser muito enxuto quanto à sua narrativa, que a existência de uma cena só se justifica se proporcionar o avanço da trama. Eu discordo. Acho que uma cena se justifica se fizer isso, mas também se tiver grande probabilidade de causar uma forte emoção no espectador (uma risada, uma lágrima...) e se desenvolver algum personagem. Se você for um bom escritor, você nem sempre avança a trama, mas sempre causa alguma emoção no espectador e desenvolve um personagem. Se você for excelente escritor, faz as três coisas de uma vez. Pois bem, mas tem essas cenas que de repente nem são os melhores exemplos de cena pra fazer qualquer uma das três coisas, mas que, pqp!, ajudam muito você, o roteirista, a preencher as lacunas e até entender melhor o porquê de certas emoções e decisões do personagem.

Aquela cena desnecessária onde o Protagonista explica seus sentimentos em relação ao seu interesse romântico/amor platônico. Oras, é muito melhor mostrar isso com ações ao decorrer do filme do que com um discurso, não? Mas, de repente, ao escrever essa cena que você sabe que não verá a luz do dia, você desenvolve melhor em sua cabeça o que se passa na cabeça (e no coração) do seu personagem. E aquela cena totalmente removida do contexto da emoção da trama central; tipo o protagonista, no olho do furacão, tendo que ir fazer a renovação do visto de passaporte? Dar um salto fora do ritmo de desespero e do sentimento de cerco se fechando é uma relaxada de tensão do espectador que você não quer dar, mas que, de repente, é boa pra você, escritor, entender como seu personagem se porta fora daquela situação. Ele sabe separar as coisas? Ele leva a pressão do "trabalho" pra "casa" (e vice-versa) ou põe uma máscara e finge que tá tudo bem? Você pode até criar quase um transmedia e imaginar pequenas coisas que adicionam à pressão do seu personagem - mas que são muito longe da trama e por isso sua inclusão no filme não se justifica - e que dão para você, o escritor, ainda mais profundidade na hora de escrever o que o cara tá passando.

Sim, de repente esta cena de 4 páginas que você escreveu vai virar uma frase numa fala na hora que o cara tiver explodindo. Algo como "Eu to na merda! Nem visto pra Síria eu consegui! Quem é que tem visto negado pra Síria?!". Mas talvez você só chegue nessa fala se tiver feito todo esse processo; e nosso trabalho é imaginar mais do que o que se vê na tela, lembra?

Você já vai escrever, de toda forma, muitas cenas que não vão ver a luz do dia e serão cortadas por motivos mil, então aproveita e aprenda coisas com elas e faça suas "mortes" terem significado!

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