Detalhes

By Eduardo Albuquerque - 3/22/2016




Por acaso vi isoladamente uma cena de "Vinyl", a nova série da HBO produzida pelo Martin Scorcese Terrence Winter e Mick Jagger e nela (representada no post pela captura de tela acima) acontecia uma coisa interessante que achei que valia um post.

Na cena, um personagem tocava uma guitarra (a lendária Telecaster blonde com escudo preto, que você comumente vê nos braços de Keith Richards, Bruce Springsteen e mil outros) numa loja de instrumentos musicais, quando ele pergunta para o vendedor se ele tem aquela mesma guitarra só que com o braço em "Rosewood. O vendedor - que não é um personagem fixo, não tem backstory, "personalidade" etc. - diz que vai ver no estoque e, assim que sai dali e o deixa sozinho, o guitarrista rouba a guitarra e sai correndo da loja.

Qual o problema desta cena? Pra maioria das pessoas nenhum. Parecerá tudo bem. Mas, para pouquíssimos aficcionados, há um. Eu explico: os braços de guitarra costumam ser feito de dois tipos de madeira. Tem o "Rosewood", uma madeira escura, e o "Maple", uma madeira mais clara. Cada uma confere uma sonoridade própria. Só que, é sabido, aquela guitarra específica, a Telecaster Blonde, amarelinha com o escudo preto, NÃO existe em "rosewood". Assim, claro que existe - porque tudo existe, né? Se você procurar no Google vai achar fotos - mas só existe enquanto "customização". A Fender, fabricante da Telecaster, nunca lançou em série, muito menos nos anos 1970, época na qual se passa "Vinyl" e o modelo de guitarra fazia aniversário de apenas 20 anos. O motivo é bem claro, basta você digitar Telecaster Blonde que você vai ver... essa guitarra, com essa pintura, foi feita pra ser em maple. O braço em rosewood fica muito feio, não combina. Enfim... a reação de um vendedor que vive daquilo seria imediata: não, claro que não, esse modelo com essa pintura não existe em rosewood.

Por que isso vale post? Porque acho que suscita uma pergunta (à qual não tenho resposta certa, então isso aqui vai ser um convite à reflexão mais do que qualquer coisa): quanto específico o roteirista deve ser em seu roteiro?

Como leitor acho um saco roteiros que são super detalhistas em tudo. Atrasa e distrai da apreciação do que é realmente o que buscamos nos roteiros: as ações e transformações dos personagens. O roteiro é uma peça técnica que todos os profissionais envolvidos lerão para transformar aqueles códigos em imagens e ações que vão despertar emoções nas pessoas. O nível de detalhe em "Fulano entra no seu carro, um FIAT TEMPRA 1998 COM RODA DE ARO 23, LUZ DE NEON e ADESIVOS do BOTAFOGO" não causará nenhum efeito prático nessa busca por emoções. A não ser num botafoguense carente. O diretor de arte preguiçoso achará ótimo porque na correria ele tá mesmo é procurando as palavras em caixa alta, mas é até condescente da parte do roteirista fazer isso com o bom profissional, que tem também que criar no que lhe cabe.

É verdade que, neste caso específico, tivesse o roteirista especificado a guitarra, não haveria esse problema. No entanto, além de como disse acima, seria condescendente com os outros profissionais e desgastante para o roteirista e pro leitor se toda vez que encontrássemos algo que pudesse proporcionar erros como esse, tivéssemos que descrever em mínimos detalhes cada pequeno aspecto de nossa imaginação. As informações que o diretor de arte precisava saber estavam na fala/ação da cena: o personagem toca uma guitarra em maple e pede uma em rosewood para que o vendedor vá procurá-la e, no processo, ele a rouba. E é isso. É o suficiente pro cara, à partir dali, buscar uma guitarra e verificar se ela existe em outro modelo. O roteiro chama a ação do ator, por exemplo: "FULANO chora". Mas não escreve "pra fazer isso, pense na sua mãe morta". Reitero: a culpa foi claramente do Diretor de Arte, que não pesquisou direito, e do Diretor, seu imediato superior e responsável por toda a impressão visual. Mas, tivesse o Roteirista detalhado o modelo, este erro quase imperceptível não teria acontecido.

Qual o veredito? Não faço idéia. A resposta fácil e corriqueira pra questão proposta pelo post é: "faça o caminho do meio, jovem padawan". Não detalhe tudo; apenas as coisas que podem gerar confusões. Mas é muito mais fácil falar do que fazer quando virtualmente QUALQUER coisa pode sucitar um erro/confusão. Algo mágico que pode reduzir a possibilidade do problema é a comunicação não apenas via roteiro, mas durante todo o processo. Cinema é um esporte coletivo, né? Infelizmente é uma coisa que tanto nós roteiristas temos que lembrar mais como também muita gente das outras posições numa produção tem que lembrar. A fruição do resultado do nosso trabalho tá intimamente ligada ao bom desempenho dos outros colegas, então, no mundo ideal, todo mundo dava a mão pra todo mundo e caminhava junto, ainda que cada um em seu quadrado.

E você? O quão detalhista acha que devemos ser? Qual é o ponto que fica demais, arrogante, punheteiro, desnecessário e qual o ponto que é insuficiente, desleixado, amador?

  • Share:

You Might Also Like

0 comentários