Netflix e o consumo serializado II

By Eduardo Albuquerque - 6/27/2016




No post passado discorri sobre como o Netflix guarda como segredo de estado informações sobre sua audiência, mas, pela primeira vez, em minha opinião, ele divulgou algo que podemos remotamente usar de forma a aprimorar nossa visão e criação. É um simples dado: segundo eles, determinados estilos dramáticos são costumariamente consumidos por mais de 2 horas e outros não e o número mágico, portanto, passa a ser este: 2 horas.

Para entender o porquê dessa informação ser relevante, temos que voltar um pouquinho atrás. Antes do Netflix, antes da internet de banda larga e do avanço tanto da compactação de arquivos de vídeo quanto do compartilhamento dos mesmos. Havia um tempo onde o espectador sentava à frente da TV e assistia seu conteúdo em pílulas. Falar "pílulas" faz sentido, pois a relação médico-paciente como metáfora storyteller-audiência (especialmente na TV nesta época) é muito boa. O storyteller dispunha de 22 episódios diferentes, os quais, num período de 6 meses, ministrava ao seu paciente (pra não dizer doente). Como tinha que durar estes 6 meses, haviam reprises no meio desses episódios e, com essa especificidade de X episódios para Y semanas - ainda aliados a especificidades de calendário como feriados e épocas de alta audiência, o chamado "sweeps" - os bons showrunners, que sabem  que o meio condiciona a história, passaram a planejar o arco de suas temporadas de acordo com estes breaks. É fácil reparar isso quando você vê de uma tacada só uma série de TV aberta e história sequenciada (como "Scandal", por exemplo). Preste atenção quando em algum momento, geralmente perto do 10º episodio, no começo do episódio rola bastante explicação sobre fatos passados. É o showrunner contextualizando para o espectador, que está há umas boas semanas sem episódio novo e precisa de uma ajuda para refrescar a memória. Preste atenção no episódio 18 ou 19, como em boa parte das vezes ele é quase um stand alone pra te dar um respiro pra batalha que serão os últimos 3 ou 4 episódios.

Pois bem. Embora o Showrunner ainda tenha de se preocupar com isso, desde a criação do DVD e da facilidade de compartilhamento de vídeos e do advento do Netflix, ele passou a ter que se preocupar também com o que os americanos chamaram de "binge watching", ou, como chamamos por aqui, "maratona". Os espectadores passaram a consumir temporadas no ritmo que quisessem/aguentassem: 5 episódios de uma vez, 1 só, meio-episódio que fosse! Com isso sempre me perguntei "caraca, como faz pra você planejar sua temporada?". Se na TV normalmente o showrunner preparava para o terceiro ou quarto episódio da temporada uma grande surpresa (para que o espectador não se sentisse "seguro" ou "acomodado", achando que já tinha entendido a série e nada mais o surpreenderia), como ele faria com o Netflix, onde todos os episódios são lançados de uma vez e o quarto episódio poderia, por exemplo, ser assitido numa segunda assistida? E a virada no meio da temporada, geralmente pelo 12 ou 13 episódio (que existe tanto por calendário, tanto por padrão de compra dos estúdios, que encomendam 13 e depois o que chamam de "back 9")? Quando a dosagem fica à cargo do viciado, a chance de overdose é grande. O controle do storyteller passa totalmente pela ilusão de um compromisso homeopático e específico do medicamento dramático.

Portanto, sendo bem específico, vou falar o que EU tirei do press release do Netflix. Não é uma verdade universal - especialmente com todos os poréns que dei no último post - apenas minha análise. Se pudesse colocar mais uns dados (como "destes espectadores, quais assistiram a temporada seguinte? E na mesma média?") conseguiria ter uma visão mais bacana, mas enfim...  o que eu tirei das informações do Netflix é:

"Temos que passar a pensar arcos com unidades de 2 horas de consumo"

Sim, pode parecer doideira. E talvez seja. Estaríamos "retornando" ao consumo de longa-metragem? É chover no molhado o quanto a estética televisiva se aproximou do cinema com o barateamento da tecnologia de filmagem, mas também faz sentido com a modernização do sistema de transmissão deste conteúdo, né? TVs de alta definição, sistema de home-theater... é quase um cinema pessoal. E melhor, você pode assistir de pijama, parando pra ir ao banheiro... É de se argumentar que é ainda mais fácil aguentar um longo período de consumo de audiovisual nestas condições do que num cinema. Por outro lado, sei de muita gente que vê Netflix no computador e até no celular... De toda forma, considerando que a média são mais ou menos 2 horas de consumo, acho que vale a tentativa. Passar a programar sua história de maneira que 2 episódios de 1 hora tenham o tempo lógico/emocional de 1. Ou 4 de meia hora tenham o tempo lógico de 1; olha que ousado! Vai que é o pulo do gato da nova tendência e você é o primeiro a executar? Vale a experiência.

Você pode perguntar "mas por que não, então, fazer logo 1 episódio de 2 horas de duração?". Pro Netflix (e ainda para alguns canais premium tipo HBO) pode até ser, eles podem se dar ao luxo. Mas uma televisão aberta não pode fazer o mesmo e ter blocado 2 horas que podem ser um fracasso e, com isso, perder publicidade, que é o que paga a conta.

Por fim, destrinchando este lance de "binge watching"... É doido; eu sempre ouvia os mais velhos reclamando da nova geração hiperativa com distúrbios de atenção, que os filmes no futuro seriam só explosão e efeitos especiais... bom, o gráfico mostra que eles tem um pouco de razão. Que quanto mais intenso e "diferente", mais os espectadores assistem continuamente. Suspense, Terror, Sci-Fi e Ação/Aventura são os gêneros mais "maratonáveis". A galera realmente gosta da adrenalina e do "e agora?!" dos seus cliffhangers. Legal. Eu acho. Sei lá, eu fico esgotado e pensando onde isso vai parar. Mas, enfim, pra quem, como eu, gosta dessa coisa que parece em extinção, que é desfrutar de um cliffhanger, ficando imaginando o que vai acontecer, meditando no que já aconteceu etc. tem sempre o Hulu, que estréia um episódio por um semanalmente.

Sou da escola Joss Whedon, que diz que você tem que dar o que os espectadores precisam e não o que eles querem. Mas... contra os fatos não dá pra brigar. VOD e binge watching são uma realidade e você, storyteller, tem de ficar de olho nisso quando for preparar seu conteúdo.

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17 comentários

  1. Muito boa essa tua análise. Não tenho NetFlix (tenho o Now), e não sou consumista de séries. Na real, eu era, quando mais novo, mas séries da minha época, como Friends, 30Rock, House (o suprassumo do "e agora?") entre outros. Mas não embarquei nessa nova onda de ver todos os episódios de uma só vez, etc. Talvez por estar em outra época (filhos, etc), ou porque sempre curti a TV/cinema e aquele mistério que fica para a próxima semana. Aparentemente, a ansiedade da nova geração quer consumir tudo de uma vez. Vi, num final de semana que minha esposa não estava na cidade, uma série com o Oscar Isaac (Show me a Hero), e realmente, o troço foi viciante. Estava passando num canal (não lembro qual) essa maratona, e realmente, tive que ver tudo... assustador (esse vício, e não a série, que por sinal, é bem boa). A dúvida que eu tenho é como se financia uma série dessas, do Netflix, onde todos os episódios são liberados de uma única vez? Na TV, tem patrocinadores nos comercias. E no NetFlix, são também patrocinadores e assinantes que bancam? Mas entra tanta grana assim?

    Sei lá... novos tempos... novas maneiras de financiar... de assistir... de viver. Difícil acompanhar esse novo estilo, e essa quantidade de séries.

    Um abraço

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    1. Essa "Show me a Hero", do genial David Simon (The Wire), no caso é uma minisérie mesmo. Então nem sei como se aplica nesse caso hehe.

      O dinheiro do Netflix é todo de assinatura mesmo. Igual a HBO.
      Entra MUITA grana sim. Eles tem milhões de assinantes.

      E é foda mesmo... a gente chegou num ponto que tem que entender que não vai dar pra ver todas as coisas maneiras que tem pra ver por aí ne? Muita oferta.

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  2. Socorroooo!
    Muita informação pra absorver, vamos ver se entendi...

    Então em sua analise você sugere que 4 episódios de 30min sejam grandes act breaks de um episódio maior de 4h?

    (E caramba, quanta informação tirada de algo que a primeira vista, parece um simples dado)

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    1. hehe a idéia é mais ou menos essa...
      mas falar em act break dá a impressão de que o que tá acontecendo é um build up pra aquilo e meio que não é por aí.

      você assistiu aquela série "Love" do Netflix? Só lembrei dela agora, depois de escrever o post, mas pensando bem, já é MEIO assim: o clássico seria o casal se encontrar ("meet cute", como chamam) logo no início; no máximo no primeiro act break. No Love, que eu me lembre, eles nem interagem até o segundo episódio. E mesmo assim, quando o fazem, não é nada significativo pro arco maior que é: eles vão ficar juntos.

      Jessica Jones também foi outra série que senti com um ritmo bem mais espaçado. Aliás, acho que a chave é essa palavra: ESPAÇADO. Você não quer que seja "lento". Tem que estar acontecendo muita coisa significativa em cada episódio. Mas o arco superior (Fulana se descobre grávida, Beltrano é demitido, Zequinha resolve se mudar) tem que ser quebrado em 4 episódios de 30 mins cada (ou 2 eps de 1 hora). E não ser uma história apenas. Sacou?

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    2. e poxa, eu queria poder tirar mais do dado, queria que houvessem mais dados. Mas a verdade é que não existe algo como "simples dado". Todo dado pode ser complexo e te dar muita informação e pano pra manga pra fazer uma ANÁLISE (como disse, não é verdade absoluta; apenas minha leitura. Mas com alguma base, acho eu, por anos de trabalho e consumo deste meio.)

      Eu sou zero exatas. Super Humanas. Mas é esse mesmo nosso diferencial. Saber "humanizar" números, criar uma história e um significado pra eles. Sempre acho que informação é poder e temos que ficar ligados para entender esses números sempre.

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  3. Sim, seus exemplos são magníficos.
    Sense8, maratonei 12 vezes(vejo a necessidade de mais uma até o lançamento da segunda temporada) e elas foram as pioneiras nisso, com certeza. Lembrei de ter assistido uma entrevista das irmãs onde elas falam do arco ser distribuído como um grande longa, isso só reforça sua teoria.

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  4. Bem, agora vc pode fazer um estudo empirico com base em Sense8:
    http://exame.abril.com.br/estilo-de-vida/noticias/diretores-de-matrix-nao-repetem-sucesso-em-serie-no-netflix

    https://omelete.uol.com.br/series-tv/sense8-2015-1/criticas/?key=97187

    Ainda estou "WTF"

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    1. Opa! Que maneiro! Então não é tanta doideira da minha parte, hein? Tem um fundo de acerto na minha análise!

      Alguns amigos roteiristas também leram o post e conversaram comigo que acharam a teoria uma tendência interessante. Mas - e concordo com os que citaram isso - ainda muito distante da realidade brasileira. Aqui as séries são sempre de tiro contínuo e dificilmente sobrevivem mais de uma temporada, com o monopólio globo/globosat dificilmente vão pra VOD. Então fica muito difícil de fazer isso... mas ei! Estamos aqui pra isso, né? Se não formos nós, os "novos", a arriscar, quem é que vai? Os "consagrados"? Não faz sentido!

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  5. Exato, acredito que o PRODAV01 contribui com a questão das multi-janelas, o canal tem apenas um ano de exclusividade.

    Agora o que tem me incomodado bastante é que com o modelo do PRODAV01, a produção de séries fica desvantajosa, 15% para o pré-licenciamento, sendo que o modelo de série na grades da tv fechada circula na faixa de 25min, uma série com 13ep é o que daria 5h41min de conteúdo.

    Sabendo que o maior motivador dos canais em licenciar produto BR é a lei 12.485, que pede 3h30min(?) semanal, e que pré-licenciando filmes na mesma linha do PRODAV, com a taxa de 5%. Sai mais em conta pré-licenciar 3 filmes, no valor da série, pagando os 5% por cada.

    Enfim, isso na minha visão.

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    1. Faz sentido! Mas mesmo assim a gama de filmes é menor, se você parar pra pensar. Temos menos de 150 filmes brasileiros lançados por ano, certo? Obviamente uma emissora não vai licenciar TODOS eles, certo? E mesmo se o fizesse, não completaria o ano inteiro de programação, não é?

      Enquanto a produção for pouca, essa não será nem uma opção.

      Mas de toda forma acredito que as TVs tenham que perceber (e talvez até já o façam) que a produção serializada é muito melhor para elas do que longa-metragens e até novelas. Você quer que sua audiência seja fidelizada e repetida. No máximo em ciclos. Repara como a novela que segue uma novela de muito sucesso dificilmente faz sucesso. Porque a galera não aguenta mais assistir, quer folga. Agora, o que aconteceria se tivesse uma pausa de 6 meses e uma nova temporada de "Avenida Brasil"?

      A Globo já tá fazendo uns testes, acabando novela na segunda (e não na sexta) para aumentar chance do espectador no dia seguinte ver a nova novela (dar o fim de semana pra ele fazer detox era mesmo uma burrice), no "vale a pena ver de novo" já fez a última semana de uma novela passar logo depois da primeira semana da outra... enfim; tão tentando fazer uma transição. Série é um produto muito melhor para se explorar comercialmente. O "copo meio-vazio" pode dizer que com ela você pode só ganhar num dia da semana, mas o "copo meio-cheio"vai, com razão, dizer que você pode ganhar 1 dia com elas por 6 anos ao invés de 6 meses. Vale mais, não?

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    2. Bem mais, fora que há mais chance de ganhar com transmidia e o licenciamento para produtos (camisas, canecas, etc...) , a novela torna esses produtos absoletos com seu fim, logo logistas terão apenas 1 ano para comercializar. A série abre esse leque de 3, 4 anos ou até mais.

      A produção de séries faz a roda girar do roteirista ao lojista (Um pouco capitalista, talvez...) E é o que vc disse, as TVs deixam de ter os expectadores para ganharem seguidores, vide "O Negócio".

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  6. Tenho uma duvida que talvez sirva para o Q&A(Que já estamos duas sextas sem); Sei que os episódios de 25min são mais atraentes aos expectadores por seu dinamismo, mas (lá vem clichê) isso se aplica mais a sitcoms. Pq esse modelo é tão usado aqui, até em séries dramáticas? Vejo o lado bom e ruim, uma vez que em 25min fica mais complicado de aprofundar arcos. Como você recebe e pode compartilhar uma estrutura para esse modelo, lembro de Doc pincelar sobre uma estrutura para episódios de 25min em "Da criação ao Roteiro".

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    1. Putz, cara, nem me fale...
      Por mim teria Q&A toda semana. Eu sempre twito "não deixem o Q&A morrer!" Mas não dá pra eu inventar pessoas mandando perguntas, né? hehe

      Eu pedi antes pra galera participar mais nos comentários e até acho que aos poucos isso está melhorando, mas em compensação Q&A ninguém mais manda. Não dá pra ter as duas coisas? =(

      Ou eu tirei todas as dúvidas do mundo? (impossível ne?)


      Enfim: MANDEM Q&A's!!

      (e Gabriel: posso copiar a pergunta e fingir que vc mandou lá? =P)

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    2. Ah, perdão.
      Tinha esquecido que agora são enviadas por email...
      Irei fazer isso.

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  7. Passando pra dizer que sua previsão se concretizou e a Netflix lançará o primeiro ep com duas horas de duração, o piloto da série Anne

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    1. Que massa! Bora, então, começar a pensar a planejar nossas histórias aí nesse esquema e sair na frente da galera toda! =)

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