Parâmetros dos Editais de Desenvolvimento da ANCINE

By Eduardo Albuquerque - 3/29/2016




É inegável a excelência, a importância e a eficácia do trabalho político-estratégico da ANCINE no que tange o aumento do número de produções e mecanismos de difusão de obras audiovisuais brasileiras. A chamada "Lei da TV Paga" (Lei 12.485) é um marco incrível que no ano passado e neste se fez sentida em larga escala e promete ser continuamente um importante incentivador do mercado e junto a famigerada "Lei Rouanet" (Lei 8.313) - incompreendida por 99% da população, que a pegou, injustamente, para cristo - vem sendo inteligentemente usada para a formação de público e, assim, a criação de uma indústria. O Fundo Setorial do Audiovisual, então, foi um enorme alento, especialmente quando se deu conta que o bom dinheiro investido é lá atrás, no roteiro. Que um roteiro com boa nota de partida faz o projeto se construir numa base sólida, com mais chance de não desmoronar.

Ainda bastante recente, o Fundo Setorial em seus mecanismos de Desenvolvimento de Projetos (PRODAV) tem, claro, ajustes naturais a serem feitos quanto ao escopo, processo e até mesmo conceito, eu acho. É a minha opinião como profissional do setor e cidadão brasileiro. No entanto, tem uma coisa boba, "menor" que isso, mas que, como criativo, roteirista e, portanto, participante/pleiteante (às vezes) destas chamadas públicas, muito mais me incomoda: os parâmetros das avaliações dos projetos.

Não por parte dos parecistas avaliadores, mas da concepção do documento mesmo. Acho uma proposta mal feita; inócua, desconectada com a realidade do desenvolvimento de um projeto. São algumas coisas que acho que mereciam serem repensadas:

  • Incongruência de espírito 
Supostamente estas chamadas públicas são para o desenvolvimento de um projeto, mas se sua obra for uma série, por exemplo, terá que ser apresentada a sinopse de, no mínimo, 5 episódios. Claro, você pode escrever de qualquer jeito, mas o fato é que o criador/showrunner só saberá exatamente o que vai acontecer em cada episódio quando tiver "desenvolvendo" a série. Nesse momento é um chute no escuro que pode acabar jogando contra, pois o parecista poderá considerar que não estava tão desenvolvido quanto o projeto de outra pessoa, afinal, é assim, através de comparações, que avaliamos as coisas. E aí como fica o espírito da proposta desse mecanismo? Desenvolvimento! O ideal era vender a idéia apenas via premissa, tema de fundo, logline e descrição dos personagens. O básico para se entender o ponto de partida, mas...

  • Gabarito
Há um problema sério que pode ser apontado como falta de lisura no processo, mas acho que é puramente porque ninguém pensou nisso; falta a disponibilização de um "gabarito", uma espécie de "projeto perfeito", através do qual não só os proponentes possam se guiar e abalizar sua inscrição, como os parecistas possam também abalizar sua avaliação destes projetos. Porque não há padronização/consenso dentre os parecistas. Isto é um fato (e não é culpa deles e sim da falta desta indicação da própria ANCINE) que pude comprovar ano passado quando fui contratado por uma produtora para analisar a carta de projetos que eles iam inscrever e uniformizá-los de acordo com a chamada pública. Para fazer isso, peguei pareceres destes projetos que haviam sido inscritos em outros anos e tinham boas avaliações em uns quesitos e noutros nem tanto. Passei a fazer um trabalho de detetive, de cruzar os pareceres e percebi que, por exemplo, o que constava como "incorreto" no parecer de um projeto, constava como "correto" em outro. Os quesitos-chave desta confusão são logo os dois primeiros: "Premissa e Tema de fundo" e "Enredo-base".

Para nós roteiristas, premissa é plot. É o que acontece. Não necessariamente do início ao fim do seu roteiro, mas, pelo menos, os fatos que põem a mudança em movimento e o quê isso vai causar para nossos personagens. Setup, Catalyst, Fun and Games SEMPRE. Se possível Midpoint, All is Lost e Finale. Já tema de fundo é o tema que aquela sequência de casos/ações na vida do personagem vai espelhar e/ou a discussão à qual pertencem as ações/casos da obra.  Premissa é o quê e Tema de fundo é por que.

Até aí, tudo certo, né? O problema é que logo depois tem um quesito chamado "Enredo-base e previsão de desfecho, com tom e gênero dramático pretendidos" que é uma redundância do que estabeleci como Premissa ali em cima, certo?

Fosse só a redundância já seria complicado, mas a compreensão do o que é o quê fica ainda mais complicada, quando lembrarmos que, em Lógica, o significado de Premissa é diferente e muitas vezes esbarra no Tema de fundo, já que ela é definida como "a base para um raciocínio". Então, é lógico(ha!); o que acontece com o personagem (e em roteiro entende-se como premissa) é reflexo do tema/raciocínio que se quer provar ou refutar e não a base dele, não a gênese do que se quer ser discutido. Sendo bem didático: você conta a história do Fulano pra discutir X; você não discute X pra contar a história do Fulano. Claro, o processo pode acabar sendo esse, de trás pra frente, porque você não conseguiu articular o raciocínio (matéria abstrata), mas a verdade é que ele veio primeiro. É um processo inconsciente e é exatamente por causa dele que você criou a história do Fulano, pra codificar a discussão/tema que te intriga à uma esfera que possa ser apreciada, consumida e discutida por outros.

Quando do meu trabalho de detetive, um parecer falava num quesito apontando X como tema de fundo e elogiando o mesmo e, depois, num outro quesito reclamava que o tema de fundo não se via refletido no argumento. Só que apontando Y como tema de fundo desta vez (e não X, como fizera anteriormente).

Enfim, a conclusão desta discussão semântica é indeterminada, mas se tornaria irrelevante para a matéria em questão se a ANCINE fizesse esta simples (e importantíssima para todas as partes!) inclusão de um gabarito, um projeto-modelo (real ou não) para que se entenda o que se espera em cada quesito e, assim, as avaliações sejam ainda mais justas.

  • Ordem dos quesitos
Minha última observação sobre estes documentos versa sobre a ordem dos quesitos. Bobagem, né? Mas já que estou aqui escrevendo isso...

O logline tem que ser a primeira coisa do documento. Pro parecista é um atalho para o entendimento do projeto e um lembrete rápido quando tiver esquecendo do que se trata o mesmo. Pro roteirista é a primeira coisa que ele faz, é a primeira linha de ordem entre o abstrato e o real, a primeira vez que ele coloca seus sentimentos em um código entendível. Logo, não faz sentido você ter "Tema de Fundo e Premissa", depois "Enredo-base", e, só depois, Logline. No início tem alguma utilidade, no final zero. Verdade absoluta disto que estou dizendo é: adivinha qual é a primeira coisa que vem no parecer final? Ele mesmo, o Logline. Logo abaixo do título do projeto.

Sou um grande incentivador de se focar no que há de bom, especialmente como no caso da ANCINE, que, reitero, ao contrário do que o público leigo pensa, faz um trabalho acima da média (especialmente quando você compara com outros orgãos governamentais), mas faz tempo que comento isso com outros colegas roteiristas (que também não são fãs do processo) e achei legal expandir a reflexão pra possíveis outros roteiristas da minha área de contato virtual que se interessem em debater o tema. Então, assim fiz. E você; o que acha?

  • Share:

You Might Also Like

5 comentários

  1. Bom dia,

    Pois é, vou dar minha opinião como alguém de fora, e baseado exclusivamente no que você colocou. Não conheço os meandros e os pormenores desses editais. Mas pelo que entendi, está faltando uma "profissionalização" das regras. E esse "gabarito", seria provavelmente a melhor solução (no caso de ser estritamente técnico, sem abrir margem para o favorecimento de uns em detrimento de outros, tá entendendo?).

    Tenho uma empresa há 10 anos, fiz pós graduação em gestão estratégica de marketing e geração de negócios e a minha visão, portanto, é de empresário. Mas como estamos lidando com arte, e segmentando ainda mais em roteiros, entramos num terreno não tão objetivo como de empresas e negócios. Mas acho que está errado, precisamos encarar os projetos como um negócio que precisa dar retorno (financeiro, cultural, histórico, etc). E talvez essa parametrização (ou a falta dela) nos projetos seja um reflexo do pouco espaço (e importância) que se dá ao roteiro no país. Quadro que está mudando, suponho. Principalmente pela aplicação dessa "lei da TV paga".

    É difícil analisar um projeto - e extrair dele a sua importância (financeira, cultural, histórica) -, se não existe uma parametrização clara e objetiva. No mundo empresarial, chamamos esse projeto de Plano de negócios. Precisamos fazer uma análise criteriosa dos pontos fortes e fracos, oportunidades e ameaças (a famosa análise SWOT) além de uma série de parâmetros que precisam ser discutidos para atestar a viabilidade do negócio.

    Mas outra vez, creio que a objetividade no campo empresarial seja maior que na análise se projetos pela Ancine, que, repito, não conheço.

    Um abraço

    Zastrow

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Fala, Zas!

      Ainda que, de toda forma, o plano de negócios de uma empresa seja menos abstrato (pois ele parte de princípios já mensuráveis, pouco especulativos), a avaliação destes projetos vai além do roteiro/parte criativa. Tem também já sinalizados (e confirmado com uma carta de intenção) os profissionais envolvidos na obra (diretor, às vezes até ator) e há uma análise também do portfolio da produtora proponente e de uma sinalização de orçamento, afim de garantir que todo mundo envolvido é capacitado pra fazer e que o dinheiro não será jogado fora; a obra ficará pronta (boa ou não) para ser consumida/comercializada.

      Concordo contigo que esta parametrização deveria ser mais criteriosa (é o que peço no post, né?) pois isso garantiria maior lisura e efetividade do processo, mas achei importante deixar claro, já que você disse não conhecer o processo, que não é apenas a análise criativa do projeto que é levada em conta. Tem uma (pequena ou não) análise de viabilidade através destas coisas que falei acima.

      abs!

      Excluir
  2. Perfeito.

    Agora, você que vive este meio, me esclareça: Qual o critério de aprovação de um projeto cinematográfico (filme ou série) pela Ancine. O projeto atendendo todos os critérios técnicos discutidos acima (está dentro dos parâmetros pré-definidos, bem ou mal), existe o componente criativo? Se existe, quem (e como) "mensura" esta criatividade? Existe um critério de retorno financeiro?

    Projetos devem partir de uma produtora, certo?

    Muitas dúvidas... (entra no site da ancine que tu vai entender tudo Zas...) mas como estamos numa conversa (semi) informal...

    Abraço

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Sim, a proponente é sempre uma produtora. Não existe edital pra pessoa física. Há um COMPONENTE criativo; não diria critério. O que é determinante é se o projeto é viável. O que eles querem é que o projeto seja realizado, o dinheiro usado e a obra concluída e exibida. Até porque é isso que dá pra controlar. Se vai ser bom e/ou visto, é outra história. A questão da qualidade é muito subjetiva, né? E não é a bilheteria que vai dizer se o filme é bom ou não, atrativo ou não. Só indica que alcançou um grande público ou não.

      O retorno financeiro não é obrigatório. Nesse sentido, o governo acredita que o mercado tem que se regular. Na famigerada lei rouanet, por exemplo, cabe ao mercado, às empresas, escolherem o que elas acham que vai ser o melhor para acoplar o nome da sua empresa (tanto de valor cultural quanto comercial). Enfim, todos esses mecanismos de cultura partem do princípio que sem isso toda produção cultural interna seria mambembe e só consumiríamos cultura externa e, com isso, milhões de pessoas ficariam desempregadas (a indústria criativa brasileira é grande e emprega muita gente, dá um confere no relatório da FIRJAN de industria criativa de 2012, eu acho). Então, não tem obrigatoriedade de retorno financeiro. Só tem que ser realizado, não pode acontecer tipo Chatô e pegar dinheiro e ficar eternamente nessa pira. Se usou o mecanismo tem que ser concluído e entregue ao povo para consumir ou não. Teoricamente ESTE é o retorno. A opção de cultura, o que é algo, com alguma lógica, inestimável de preço.

      Excluir
  3. Um elemento complicador nos Editais é que não existe segmentação dentro dos mesmos. Normalmente um único edital contempla todos os gêneros e temas possíveis o que torna ainda mais abstrata a avaliação das bancas e é comum essas bancas aprovarem determinados projetos com uma mesma temática, gênero ou padrão estético/político. Em alguns países, como o Canadá, nos editais governamentais ou privados que financiam o audiovisual, é possível o requerente "navegar" dentro das formas de financiamento até encontrar aquele que se encaixa no perfil do seu projeto.

    ResponderExcluir