Sabem nada, inocentes...

By Eduardo Albuquerque - 2/10/2015



Você leu meu post “trabalho e não sonho”? Nele eu preparei a sua postura para a hora que você tiver que sentar à mesa para ouvir críticas e/ou discutir o seu trabalho. Agora é hora de te preparar para o que está do outro lado da mesa.

Infelizmente a maioria das pessoas que vão fazer “notes” sobre seu roteiro não são muito preparadas para isso. Os muitos que falam, quase sofrendo!, que “precisamos de roteiristas”, costumam ser os mesmos que no fundo acham que roteiro é uma mera formalidade. E são esses que vão avaliar seu roteiro.

A verdade é que roteiros são peças simples de serem apreciadas (ou não), mas MUITO difíceis de serem realizadas e, por conseqüência, entendidas. Gostar (ou desgostar) não significa entender (ou não) uma obra. Poucos sabem ler roteiro no Brasil. Pouquíssimos entendem de fato o que é uma estrutura, os beats clássicos/momentos de um filme, o percurso natural de plot, curvas dramáticas. A noção de faculdade de cinema para profissionais de cinema é muito recente; a maioria destes "gatekeepers" (sejam "leitores", produtores, executivos etc. e tal) vieram (e/ou vivem) da publicidade. Eles sabem que a galera gosta de x ou y (nada relacionado ao seu roteiro), são antenados e tem referências interessantes. E isso é ótimo para engrandecer seu roteiro. Mas eles entendem os elementos e a técnica de um bom storytelling? Conseguiriam sentar e transformar as coisas da cabeça deles em linguagem roteirística, visual, com ritmo e blábláblá? Nem a pau. E aí é muito complicado, pois sabe quem manja disso? Você! Você estudou essa ciência específica, você sentou por horas e suou pra tirar da cabeça aquelas letras. Você ficou com a história na cabeça - não existe “deu meu horário!”; se você é roteirista você está SEMPRE trabalhando - você testou, trocou, viu o que funcionou e o que não funcionou. E aí vem a pessoa e, comumente, dá uma orelhada. Quer mudar algo por achismo. Ou por gosto. “Por que isso é azul? Eu diria que isso é verde”. Oras, é azul, pois sou o roteirista, estudei todos os elementos desta história e ser azul faz sentido com todo o resto!

Pior; às vezes a pessoa não consegue identificar a causa real do que achou estranho e aponta um sintoma completamente diferente para justificar algo que ele não entende ou não gosta. Aponta duas coisas antagônicas dentro de uma estrutura, que simplesmente não tem como acontecer juntas. Isso quando não escolhe algo para mudar apenas por jogo de poder, intimidado/enciumado porque você foi capaz de algo tão complexo, que ela, exímia contadora de histórias, life of the party, não consegue fazer assim de forma tão eloqüente quando no papel, o que requer técnica/inteligência específica.

Eu costumo lidar bem com dois tipos de “notes”: os de ordem de produção, direção ou qualquer área correlata ao produto final – tipo: “não podemos filmar na Lua. Faz essa cena em outra locação?” Ou “esse ator é muito bom de comédia física, vamos dar algo assim pra ele?” e notes sobre estrutura. Estrutura mesmo: “Midpoint não está dando um sentimento de urgência. Falta um ticking clock” ou “Sinto que o personagem principal poderia perder mais no All is lost”.

Já quando são notes baseados em gosto e achismo eu sofro. "Eu não gosto" é triste. E mesmo introjectando na cabeça que isso não é um sonho e sim (e apenas) um trabalho, vejo nos olhos das pessoas que a minha cara não está das mais serenas. De certa forma, talvez nós, que colocamos nosso coração e alma na escritura (não conheço outro jeito de chegar à página final que não esse), quando ouvimos alguém dizendo que não gostou de algo do roteiro, basicamente entendemos como: não gostaram de mim. Mas isso é infantilidade e vulnerabilidade nossa. Coisa de artista; o que não queremos ser, certo?

Então - apesar de numa ordem não ortodóxa - acho que encerro esta seção de posts (como chamo? “o roteirista e seu lugar”?) com esses três mandamentos pra você seguir em frente sua carreira com pouco sofrimento e muitos frutos:
  1. Cinema é coletivo; pessoas vão intervir no seu trabalho. (leia o post completo
  2. A maior parte das pessoas que vão avaliar o seu trabalho, os gatekeepers, digamos, não faz a menor idéia de como se faz o seu trabalho. 
  3. Para que você consiga dar o seu máximo e ser duradouro no ramo, sabendo destes dois pontos acima, você tem que entender que não é um artista; isto não é seu sonho e sim seu trabalho. (leia o post completo)

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